Geralmente quando falamos sobre sincretismo fazemos uma relação direta com a questão religiosa. É verdade que a palavra está associada muito mais às religiões do que a outros eventos. No entanto, é preciso deixar claro que o sincretismo não é um fenômeno restrito somente aos grupos religiosos. Por isso, é preciso explicitar o que se entende por sincretismo. A palavra sincretismo tem origem na palavra grega “sincretismos” (possui o mesmo som e a mesma transliteração). Costuma-se dizer que a palavra foi usada pela primeira vez pelos cretenses quando reuniram vários grupos para combater um inimigo comum. Portanto, o primeiro significado da palavra é juntar, unir, reunir, aglutinar, compor um grupo. Vejam que não há um sentido negativo. Digo isto porque atualmente a palavra carrega um sentido mais pejorativo do que positivo.
O sentido negativo da palavra se deu pelo fato de termos dificuldades de conviver com a diversidade e, também, por acharmos que existe uma realidade pura, justa e boa por si mesma. Assim, sincretismo virou sinônimo de mistura, de confusão, de perda de identidade. Portanto, toda vez que alguém afirma que algo é sincrético quer dizer que não é puro, que é estranho, que não mantém mais lealdade as suas tradições originárias. Porém, mesmo essa visão de algo misturado ou miscigenado, também, pode ser visto de forma positiva.
A ideia de sincretismo foi mais aplicada a questão religiosa porque houve uma época que ao explicar as religiões de matriz africana, geralmente se referia a elas como sendo sincréticas. O problema é que toda vez que achamos que algo é sincrético é porque partimos de um modelo, de um padrão ou de algo que julgamos ser o correto ou puro. Nesse caso específico, as religiões de matriz africana eram sempre comparadas com religiosidades consideradas como “o padrão”, “o modelo”, “o normal”, que era o caso do cristianismo. Uma outra explicação se deve ao fato de que a Umbanda e o Candomblé relacionaram seus orixás a nome de santos católicos. Essa mistura de elementos de uma religião para outra, essa troca de símbolos e significados, foi comumente denominado de sincretismo. Por muito tempo essa relação sincrética foi interpretada como uma espécie de submissão das religiões de matriz africana ao catolicismo. Mas, atualmente defende-se o contrário, esse processo sincrético se deve muito mais a uma ação de resistência do que a um processo de submissão.
Então porque achamos que somente as religiões de matriz africana ou orientais são sincréticas? Não podemos nos esquecer que o próprio cristianismo é uma mistura ou junção de vários outros pensamentos. O cristianismo foi formado a partir do pensamento judaico, Filosofia platônica, Filosofia Helênica estóica, bem como outros costumes e tradições romanas. No caso do entrelaçamento entre judaísmo e cristianismo, muita gente não entende esse processo como sincrético, uma vez que o cristianismo é visto como continuação do judaísmo; embora o judaísmo não entenda dessa forma.
É preciso deixar claro que o sincretismo não acontece somente entre grupos religiosos. As ideologias políticas e mesmo a cultura, também, sofrem processo semelhante. Se levarmos em consideração que sincretismo pode ser entendido como absorção de novos componentes que ajudam a criar uma nova expressão, então podemos afirmar que esse processo acontece a todo instante na sociedade. Nesse sentido, o sincretismo tanto na questão religiosa quanto cultural não deveriam ser vistos de forma negativa. Portanto, é possível uma religião, uma cultura ou uma ideologia política, assimilar conceitos, rituais, símbolos etc., dando-lhe uma nova configuração, uma nova interpretação ou simplesmente incorporando na sua integralidade.
Aqueles que não defendem o diálogo inter-religioso, costumam acusar esses movimentos de promoverem uma reunião ou unidade sincrética. No entanto, é preciso deixar claro que o sincretismo não tem relação com diálogo inter-religioso ou movimento ecumênico. Esses movimentos têm por objetivo aproximar o diálogo, a comunhão e a possibilidade de traçar objetivos comuns. As diferenças que separam os diversos grupos religiosos não são empecilhos para que possam serem vistos como irmãos e irmãs. O diálogo inter-religioso se configura como tentativa de promover a unidade na diversidade. Aliás, isso deveria ser visto como algo positivo. Os grupos religiosos são tão criticados pelo fato de não se entenderem e muitas vezes até mesmo se agredirem mutuamente; no entanto, quando se propõem caminhar juntos ou promover o diálogo, são acusados, por uma linha mais conservadora do cristianismo, de estarem promovendo uma espiritualidade sincrética. Mas isso não tem nada a ver com sincretismo.
No entanto vale lembrar que algumas igrejas protestantes, de linha neopentecostal, utilizam práticas e símbolos de outros grupos religiosos como por exemplo a ideia de realizar correntes, utilizar sal grosso, dia do descarrego, danças, êxtases etc. Isso, também, é sincretismo. Isso é apropriação dos símbolos de outra religião. Assim, verificamos uma incoerência. Os mesmos grupos que criticam o sincretismo, principalmente das religiões de matriz africana, não conseguem, não enxergam ou não querem admitir que, também, são sincréticas. Portanto, são alguns grupos fundamentalistas que hoje afirmam e fortalecem o sincretismo em seu meio.
Como afirmei, a dificuldade de convivermos e reconhecermos a diversidade bem como a ideia de que existe uma cultura, uma religião, uma ideologia que seja padrão ou correta, nos conduzem a enxergar o outro como sendo sincrético. Dessa forma, por um lado, a palavra “sincrético” é apresentada de maneira negativa; é vista como algo que causa uma deformação. Por outro lado, é possível afirmar que todas culturas e os grupos, sejam religiosos ou não, já passaram por um processo de sincretismo no qual incorporaram expressões, símbolos e conceitos que estão presentes normalmente sem que a gente perceba esse processo.
Clemildo Anacleto da Silva
Professor do PPG Mestrado em Reabilitação e Inclusão do Centro Universitário Metodista- IPA. Coordenador Núcleo de Estudo sobre Educação, Diversidade e Inclusão.
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